Caso clínico
Trabalhamos desde 1984
com mulheres vítimas de violência. Esse trabalho começou no Rio de Janeiro,
ligado ao IBRAPSI, Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições.
Fazíamos atendimento usando terapia focal baseada na metodologia desenvolvida
por Hector Fiorini.
Usávamos um único foco em níveis diversos − a situação trazida por um paciente em que a "porta de entrada" fosse realmente uma série de sintomas somáticos (taquicardia, palpitações, falta de ar, tonturas), desencadeados num segundo nível pela ansiedade ou angústia frente a uma situação especifica traumatizante.
Como delimitação do foco, utilizávamos a sintomatologia apresentada.
O conflito atual na
maioria das vezes era localizado, geralmente de origem somatoforme[S1] : insônias,
cefaleias tensionais, náuseas, vômitos, diarreias. Esses sintomas eram conectados às situações
traumáticas vividas.
Nesses casos que envolviam situações traumáticas, a comunicação inicial de que focaríamos o sofrimento psíquico trazido era eficaz. Sua comunicação era geradora de tranquilidade. Seu sofrimento era acolhido.
Nesses casos que envolviam situações traumáticas, a comunicação inicial de que focaríamos o sofrimento psíquico trazido era eficaz. Sua comunicação era geradora de tranquilidade. Seu sofrimento era acolhido.
Dizíamos também que
poderia haver uma possibilidade de diminuição de seus sofrimentos.
Essa intervenção
também ajudava a estabelecer um diagnóstico. As pessoas com estresse
pós-traumático aceitavam esperançosas essas intervenções, e seu sentimento era
de alívio.
Aprendemos a usar
essas intervenções verbais com maior precisão com o passar dos anos.
Em 1988, estudando Reich no Centro Orgonômico
W. Reich do Rio de Janeiro, introduzimos alguns “actings” da vegetoterapia
caracteranalítica. Foram extremamente úteis e eficazes, principalmente os que
levavam a uma expressão emocional mais forte.
Logo depois
acrescentamos a análise do caráter como método. Utilizávamos principalmente as
intervenções diretas sobre os traços de caráter que eram ligados diretamente ao
narcisismo secundário. Esclarecíamos que esses traços dificultavam a
comunicação com as outras pessoas, trazendo sofrimentos para si, mas que
poderiam ser evitados com a conscientização desses traços.
Essas intervenções,
quando bem-sucedidas e apropriadas facilitavam a adaptação, a inserção social.
O sentimento finalizador era o de segurança e a atitude de uma maior
assertividade.
Constatamos hoje que a
capacidade de resiliência aumenta quando o narcisismo secundário diminui.
Com o passar do tempo
esse método foi elaborado. Atualmente, utilizamos o movimento ocular de
lateralização, de acordo com o método do EMDR, elaborado por Francine Shapiro.
Continuamos a utilizar
a comunicação verbal oriunda da metodologia proposta por W. Reich e adaptada
por nós.
Vamos nos ater a um
atendimento especificamente de 2008.
Algumas mulheres que
perderam os filhos assassinados souberam, através de uma ONG, desse trabalho e
vieram nos procurar para atendimento.
Esse atendimento é
individual. Entendemos que principalmente para esse tipo de situação um
ambiente sigiloso e que transmita confiança é extremamente importante.
A mãe que foi atendida
por mim estava em grave estado de sofrimento. Presenciou os assassinatos. Uma
das vítimas era seu filho de 16 anos.
Essa situação terrível
já havia acontecido há um ano. Ela havia presenciado um outro assassinato.
Ela, então minha
paciente, estava muito abatida e com um aspecto muito depressivo. Buscava
desesperadamente alguma forma de entendimento para o que tinha vista e para seu
sofrimento.
Estava, na ocasião,
com 35 anos, mais um filho de 12 anos. Os dois do mesmo pai. Na ocasião estava
separada do marido.
Trabalhava como
empregada doméstica em um bairro afastado de sua comunidade. Gostava de seu
trabalho. Não gostava da distância e dos meios de transporte urbano.
Estava saindo de casa,
rotineiramente, às 4h30min da manhã, quando perto da sua casa viu uma
movimentação estranha para a hora. Logo depois percebeu o que estava
acontecendo. Execução sumária. De muito perto viu os assassinatos. Lembrava-se
dos gritos, do som dos disparos. Não era a primeira vez que isso acontecia. Nos
últimos cinco anos havia testemunhado um assassinato uma outra vez. Em um
espaço mínimo de tempo presenciou algumas cenas de violência, incluindo dois
assassinatos, sendo que o último do próprio filho.
Havia tentado esquecer os
disparos, os cheiros, os outros sons.
Antes do último
acontecimento traumático tentava negar o acontecimento anterior, acreditando na
impossibilidade de um novo acontecimento. Usava − muito comum em situações
traumáticas − o mecanismo de defesa de negação.
Esse mecanismo de
defesa consome muita energia. A pessoa corta várias possibilidades de troca
afetiva. Muitas vezes, dependendo do grau de negação, entra num estado hipomaníaco. O quantum de energia utilizado na negação
é tão grande que somente o mecanismo de defesa do ego não consegue dar conta da
situação; nesse momento, quando mais angústia é gerada, sintomas são fabricados
e na maior parte das vezes um quadro sintomático como esse conduz a[S2] uma leve hipomania.
Leve por não surgir em
todos os momentos, por estarem, os sintomas hipomaníacos, circunscritos a
determinados momentos de sua vida cotidiana, a determinadas atitudes, não
exigindo um quantum muito grande de
energia. Ou seja, ainda sintoma.
Quando ouviu os tiros
novamente e percebeu a movimentação, entrou em pânico. O que viu a seguir, seu
filho, fez com que entrasse num estado de pânico próximo do colapso.
Pelo seu relato o
choque emocional durou aproximadamente dois meses. Não sentia sabores, cheiros.
Dormia muito pouco, sempre acordando três horas antes do tempo em que aconteceu
a tragédia. A partir daí, em qualquer lugar que estivesse no mesmo horário, se
dormia acordava sobressaltada. Depois de algum tempo passou a não dormir mais.
Estava insone por volta de três meses.
Além disso se
alimentava muito pouco. Não tinha fome e praticamente não sentia o sabor dos
alimentos, com exceção dos altamente calóricos, de sabor adocicado.
Já havia tentado
consultar um médico num posto de saúde, mas havia desistido.
A relação com seus
filhos estava se deteriorando em pequenas desistências. Não conseguia investir
nenhum afeto em nenhuma situação. Estava completamente transtornada e bloqueada
emocionalmente. Suas relações e comportamentos eram mecânicos, sem vida.
Antes desse último
trauma e depois dos outros seu comportamento era agitado. Antes desses
acontecimentos descrevia-se como uma mulher ativa, alegre.
Gostava de estar com
os filhos, namorar, dançar, ir à praia, estar com as amigas. Sua vida afetiva e
social era rica. Contava com ajuda e com disposição para ajudar outras pessoas.
Um dos sintomas do
estresse pós-traumático é a busca descontrolada. A pessoa quer se livrar de seu
sofrimento de qualquer forma. Sua busca, se não ficarmos atentos, pode não se
diferenciar da errância psicótica.
A diferença é que na
errância psicótica não há busca para respostas específicas e sim necessidade
de fugir de algo que não se sabe[S3] somente é
representado por uma angústia imensa. Pela angústia, acontece a cisão
psicótica.
Na busca do estresse
pós-traumático a pessoa só consegue ouvir suas vontades. Fica distanciada de
suas necessidades afetivas pelo bloqueio emocional e suas vontades ficam em
evidência.
Chamamos de
necessidade. Por exemplo, a alimentação, básica para a sobrevivência tanto
emocional como biológica. E vontade é o que já tem uma referência cultural mais
forte. Como uma mulher grávida que diz estar com vontade de comer determinada
coisa e só aquela coisa, se afastando da fome específica. Na fome específica
(mulher mais genitalizada) um grupo de alimentos está referenciado a ela. Em
contato com sua potência a mulher grávida se satisfaz com qualquer alimento
pertencente a esse grupo. Atos ligados mais à vontade que a necessidades
empobrecem.
Como a vontade é muito
ligada ao narcisismo secundário sobre verdadeiros bombardeios da cultura que a
pessoa está inserida, e através do caráter ela se cumpre, é o caráter que, como
espelho dela, é a instância psíquica responsável pela sua expressão como forma
defensiva ou como forma de expressão propriamente dita.
Um traço de caráter
como a persistência pode ter como polo defensivo a teimosia. Vemos os traços de
caráter como uma moeda cara e coroa, onde muitas vezes só a defesa aparece. Isso
significa que essa defesa está pesada energeticamente. Essa pessoa só tem um
determinado funcionamento à sua disposição. A couraça se enrijece.
Se existe muita
energia se movimentando, produzindo mal-estar, ela está presa a determinados
lugares no nosso corpo. Podemos ler esses tipos de movimentos como sintomas.
As pessoas com
psicoses não desenvolvem sintomas de estresse pós-traumático, mesmo passando
pelas mesmas situações traumáticas. Não existe um caráter constituído,
estruturado, capaz de sustentar tanto. Por isso, seu funcionamento é outro.
Produzem cisões correspondentes a seu sofrimento.
A pessoa que responde
dessa forma ao trauma, produzindo tantos sintomas, já construiu um caráter
específico. O caráter ou traços mais fortes desse caráter sustentam o trauma.
“No estresse há dois
componentes distintos: o sistema neural e o sistema hormonal. O componente
neural do estresse é controlado pelo sistema nervoso autônomo. É dividido em
duas subpartes: sistema simpático, que se ativa durante o estresse, e o
parassimpático, desativado durante o estresse” (Berns, G. O Iconoclasta, 2008, p. 82).
Voltando a nossa
paciente. Ficou claro na primeira entrevista que ela sentia uma culpa imensa
pela situação. Achava que não havia dado atenção suficiente ao filho, que se
não tivesse se omitido no primeiro momento de seu trauma, quando viu o assassinato anterior, poderia ter salvado a
vida do filho. Mas, na realidade, estava escuro e não viu de tão perto a ponto
de identificar os assassinos.
Dessa forma, culpando-se,
trazia para si toda a situação traumática, mudando de posição. De vítima
passava a maior orquestradora da sua própria história. Como não tinha como
intervir durante a situação traumática, construiu uma história de culpas onde
podia ordenar e entender. Por pior que fosse, estava no controle. Mesmo que
ilusoriamente. Necessitava falar disso várias vezes, numa tentativa de ver
outros ângulos onde pudesse voltar atrás.
Foi estabelecido entre
nós que começaríamos com o trabalho ocular de lateralizaçao. Ela sentada
seguindo meus dedos − a técnica do EMDR, adaptada à terapia reichiana.
Como se sentiu
amparada por mim, na primeira sessão, depois de duas entrevistas, conseguiu
entregar-se a um choro profundo. Percebi que sua garganta se soltou um pouco,
suas mandíbulas muito retesadas afrouxaram-se. Durante esse momento de entrega
às suas emoções, conseguiu gritar e socar com desespero. Seu peito também
começou a se manifestar junto com seu diafragma. Sentiu-se mais tranquila
depois dessa primeira sessão.
Atendemos três vezes
na semana, nesse primeiro momento, durante um mês. Dessa forma o vínculo de
confiança torna-se mais fortalecido e a pessoa consegue uma entrega maior.
Na semana posterior
continuamos com nosso trabalho. Ela lembrou-se de outros detalhes. Cor da roupa
de dois outros garotos que foram assassinados. Cor da roupa dos assassinos.
Sentiu muita raiva e conseguiu socar durante um bom tempo, até ficar exausta.
No final dessa sessão conseguimos ajudá-la a enfrentar sua impotência.
É muito importante ficarmos
com a orientação de Reich. Trabalhar, dentro do ponto de vista econômico, com
afetos e quantum de afetos. Assim,
trabalhamos as dificuldades emocionais ligadas ao acontecimento. Vamos
diretamente à dificuldade e ao lugar em que está localizada no corpo. Além de
mostrarmos que estamos entendendo, ajudamos a pessoa a se conectar mais com seu
corpo. Ajudamos a que tenha maior controle de si mesma através da percepção.
Dessa forma as pessoas se sentem realmente mais plenas e capazes de lidar com
situações difíceis.
Ficando somente com a
resolução dos sintomas, corremos o risco de perder a eficácia do processo,
porque acreditamos que o caráter como um todo tenha uma função muito importante
em tudo isso. Só um caráter bem estruturado é capaz de sustentar tantas
situações traumáticas. Fica, para nós, muito claro que é através dele que nos
relacionamos. É realmente, como diz Reich, nossa forma de estar na vida.
Os sintomas podem
funcionar no início da terapia como um gatilho. Dessa forma, puxam as emoções represadas.
Abordando os afetos diretamente ajudamos a pessoa em dificuldades a encontrar o
sentido das representações que estão vinculadas a eles.
Depois das seis
primeiras sessões, sentimentos como culpa e emoções como a raiva e o medo
diminuíram muito. Os sintomas como vômito e náusea acabaram. Seu sono, embora
entrecortado e com muitos pesadelos, melhorou.
Trabalhamos o sentido
afetivo nos pesadelos. Pegamos sempre a emoção predominante no sonho ou ligada
a ele e a partir daí desenvolvemos um trabalho de desconstrução desses afetos
que pairam e seguram uma determinada situação.
Depois do trabalho com
os sonhos, nas últimas sessões, trabalhamos os traços de caráter envolvidos
nesse conflito. Através da conscientização da sua arrogância, conseguimos que percebesse
outros traços envolvidos como insegurança em determinadas situações, por
exemplo. Conscientizou-se facilmente de outros traços como a competitividade e
percebeu quantas vezes eles atrapalhavam sua comunicação com os outros e
consigo mesma.
A partir daí pôde
fazer o luto. Sua apatia acabou e todos os sintomas ligados ao estresse
pós-traumático também.
Percebe seus traços de
caráter através de sentimentos desagradáveis. Quando eles começam a se
manifestar percebe o que o motivou e também, menos vezes que a percepção, faz o
movimento contrário.
Em nossa experiência
clínica, passamos a adotar o critério de definir com o paciente o momento do
término.
Assim, nos casos em
que o paciente efetivamente apresenta uma situação de crise, intensamente motivado
para a psicoterapia, com estruturação de caráter satisfatória (avaliada pelos
traços que aparecem), o trabalho tem um final satisfatório para ambos.
No caso dessa paciente,
grande parte desse sucesso terapêutico se deveu à história. Foi uma criança que
teve pais amorosos, liberdade de expressão e uma vida, até o início da vida
adulta, segura economicamente. Nasceu e viveu até os 17 anos numa pequena
cidade do interior, com pais presentes e amorosos. Mudou-se para o Rio de
Janeiro, ao engravidar-se de seu namorado. Como ele já morava no Rio, casou-se
e veio morar com ele. Logo depois começou a trabalhar como empregada doméstica.
Era um lugar onde podia ficar com seu filho. Construiu um trabalho agradável e
baseado em sentimentos como respeito mútuo, solidariedade, etc.
O mesmo não aconteceu
com seu marido. Começou a abusar de álcool e ter um comportamento arriscado em
todos os âmbitos de sua vida. As brigas do casal ficaram constantes até que,
logo depois do nascimento do segundo filho, separaram-se.
Portanto, em nossa proposta de psicoterapia, procuramos avaliar de inicio a possibilidade de sua aplicação (indicação). Depois, se a pessoa é indicada para esse processo, ou seja, se tem um caráter estruturado, se está suficientemente motivada e se a situação traumática é recente, contratamos a forma de psicoterapia. Um mês com três sessões semanais. No segundo mês, uma sessão semanal e a partir daí se o tratamento foi bem sucedido uma sessão de avaliação a cada três meses, durante um ano. Após esse período uma sessão anual durante dois anos. Após dois anos a alta é estabelecida.
Portanto, em nossa proposta de psicoterapia, procuramos avaliar de inicio a possibilidade de sua aplicação (indicação). Depois, se a pessoa é indicada para esse processo, ou seja, se tem um caráter estruturado, se está suficientemente motivada e se a situação traumática é recente, contratamos a forma de psicoterapia. Um mês com três sessões semanais. No segundo mês, uma sessão semanal e a partir daí se o tratamento foi bem sucedido uma sessão de avaliação a cada três meses, durante um ano. Após esse período uma sessão anual durante dois anos. Após dois anos a alta é estabelecida.
Caso o tratamento não
tenha atingido suas metas, avaliamos as causas e indicamos outro modelo de
tratamento psicoterápico.
Essa paciente obteve
alta, depois de passar por todo o processo. Atualmente, sente-se capaz de
continuar no controle da sua vida. Recuperou sua capacidade de sentir e de
diferenciar os sentimentos, ligando-os aos seus fatos cotidianos.
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